quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A casa VIII - profundezas, luz e sombra

No reino de Hades


Morte, transformação, sexo, renascimento, troca de pele: são muitas as palavras associadas à casa VIII e ao signo de Escorpião.
Sendo uma casa "aquática", sabemos que os assuntos aqui correlacionados referem-se ao campo sentimental e emocional e, portanto, ativam as correntes menos lógicas e mais instintivas de cada um.
Se na casa IV o que está em jogo são as raízes sentimentais e a própria "herança emocional" familiar (tende a funcionar de maneira mais inconsciente), a casa VIII costuma trazer à tona o que foi recalcado e explodir (ou implodir) o vulcão emocional. Como? Através de um encontro íntimo e profundo com um outro.
Vale a distinção: encontro: espaço onde as máscaras caem, o ego balança e as pulsões vitais berram suas urgências.
Assim, as boas maneiras, o bom senso, o ponderado e "socialmente aceito" libriano (não à toa, o signo precedente) desmancham-se frente a inexorabilidade das pulsões vitais: raiva, tesão, dor, prazer sublime, absoluto vazio. E no meio disso, nossa auto-imagem (que é algo cristalizada, nos ampara e confere alguma segurança) balança e, por vezes, entra em crise. Nada mais normal.
Afinal, no momento em que somos acometidos por uma emoção muito forte e concentrada - digamos, a morte de alguém querido - toda nossa estrutura é questionada. Afinal - se pergunta o ego - de que adianta nos moldarmos desta ou daquela maneira se há algo maior, que ocorre a despeito de qualquer desejo ou vontade individual? Aliás, o que é mesmo esse "indivíduo"? Somos, de fato, senhores de nossa vontade - ou apenas imaginamos sê-lo?
Mergulhar, amigos, esse é o convite/intimação. Intimação, intimidade. Fazer vibrar os acordes de nossas entranhas, sem medo ou fingimento. "Nem fraude, nem favor", diria Jurandir Freire Costa; ou, como diz Chico:

Vida, minha vida
Olha o que que eu fiz
Toquei na ferida, nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
de olhos sombrios
Mas vida ali, eu sei, que fui feliz

As palavras nos levam direto à idéia de uma experiência totalizante (vida) que ocorre através de experiências dolorosas, profundas e sutis (ferida, nervos e fios (?!)) com um outro (os tais "homens sombrios") mas que leva o sujeito à vivência da plenitude, ou seja, da felicidade.
Contudo, nem sempre a casa VIII mostra-se tão dura. O abandono de um controle emocional - muitas vezes travestido de sexual - é mais difícil do que parece, e a observação de nossas atuações sexuais pode dizer muito a respeito de como lidamos com nossos demônios e pulsões (ou sequer se percebemos que estão lá.)
Noto que, à medida que integramos essa face "menos nobre" à nossa persona habitual, os demônios deixam de nos assombrar. E um relaxamento maior pode surgir. E a entrega mais completa acontece. E podemos experimentar um orgasmo mais pleno (porque o medo de se perder cedeu espaço à vontade de fusão.) Parece que nem somos mais aquilo que pensávamos ser, mas quem se importa?
A "pequena morte".
Se morre o "eu", morre o "outro". Quem já mirou seu parceiro(a) após uma transa intensa e não o/a reconheceu direito? Quem são esses que surgem quando morre o "eu"?
Drummond:

Amor, pois que é palavra essencial

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

PS: um link para a leitura desse poema:
http://www.youtube.com/watch?v=cPUHzvifuMc





quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Viagem de Chihiro II - Sol e Netuno

O primeiro grande desafio de Chihiro é limpar um espírito que todos tem nojo. Sua imagem é notável: gigantesco, parece uma grande bola de cocô. Durante sua limpeza - que ocorre apenas quando Chihiro percebe que o espírito está, na verdade, machucado - todo tipo de impurezas saem de seu corpo: bicicleta, móveis, etc. E, num grande expurgo, o espírito mostra-se na verdade como um ente benéfico, que presenteia Chihiro com um "bolinho de ervas".
Assim, temos a transmutação grotesco-sublime no diapasão netuniano e o presente (lunar, pois é alimento físico) como resultado. Chihiro curou o espírito pois não teve medo de "meter a mão" na merda (aparente). Um gesto de amor e doação. Isso é Sol, que se queima e nos alimenta com sua luz e clareza, atuando sobre um amálgama Netuno-Saturno.
Em seguida, Chihiro descobre que seu amigo (e novo amor) Haku está enfeitiçado e decide ajudá-lo. Assim, quando na forma de um dragão, Haku come o "bolinho de ervas" (no prinípio ele a alimentara, agora a situação se inverte.) Mas isso não é suficiente. Chihiro decide viajar até a casa da bruxa que o enfeitiçou para salvá-lo.
A ligação entre Chihiro e Haku é misteriosa: ele lembra-se do nome dela mas não sabe porquê. E lembrar é o mote da história: Chihiro não pode esquecer seu nome (sua identidade) e seus pais "esqueceram" que eram humanos e "comeram como porcos".
A segunda viagem de Chihiro (uma viagem dentro da viagem) é empreendida por sua vontade, movida pelo seu amor e necessidade de salvar. Aqui, a passividade lunar cede espaço ao caráter ativo solar. E ela ganha companheiros de viagem, num típico movimento de expansão Sol-Júpiter.
Lá, conhece a irmã-gêmea de Yubaba, desta vez um arquétipo lunar positivo. E lhe devolve aquilo que Haku havia roubado e que lhe causara o feitiço.
Como podemos imaginar a conclusão da história, Chihiro salva seus pais e sei amigo/amor Haku, que resurge esplendoroso na forma de um belo Dragão.
E compreendemos, afinal, a origem da ligação entre Chihiro e Haku: ele (num momento anterior, quando era um rio) a salvara quando ela estava prestes a se afogar, levando-a para a margem. Assim, podemos concluir com a síntese da noção solar-indivíduo com a porosidade netuniana: Rio (sua forma despersonalizada) e o salvador, o próprio Haku.
Podemos concluir que o que está sugerido, ao fundo, é que o paradoxo Sol-Netuno (tradicionalmente associado a desgraças) é resolvido aqui de uma maneira harmoniosa e delicada. Num momento em que o meio-ambiente é foco de preocupações constantes, lembrar de nosso amigo Netuno e buscar sintonizar-se com ele não é uma idéia de todo mal.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A viagem de Chihiro I - comer, beber, viver


Acho "Viagem de Chihiro" bom demais. Revi-o outro dia e parecia uma lição lisérgica de simbolismo astrológico. A ver.
Se tomarmos a protagonista como o arquétipo do herói, notamos que no princípio do filme logo ela está em transição, em crise. Chihiro está mudando de cidade e sente saudade dos amigos e daquilo que conhecia. São aspectos que a ligam ao passado e às suas origens, ou seja, lunares.
Assim, quando seu pai - um belo exemplar de impulsividade jupiteriana sem limites - decide se aventurar numa "cidade abandonada", Chihiro não desgruda da mãe (Lua de novo) e pede para voltar. Mas um delicioso cheiro de comida atrai seus pais, que começam a fartar-se de maneira bizarra dentre os alimentos que surgem numa barraca. Aqui, num outro enfoque, repete-se a Lua no seu nível mais concreto, como alimentação/nutrição; Contudo, a família (a configuração lunar mais acabada) está em crise "gastronômica" e, implicitamente, emocional - assim como Chihiro.
Interessante notar que a punição dos pais pela gula desmedida é o retorno ao estado animal, onde há a ausência da razão (Sol) e predomínio dos instintos (Lua.)
E como a protagonista (re)age? Grita pela mãe, grita de novo. E começa a sumir... quer coisa mais evasiva do que literalmente desaparecer? Salve Netuno.
Chihiro se salvou por não ter comido, mas para sobreviver nesse mundo psico-fabulesco terá de comer alimento feito ali.
Retomando: a crise lunar já sugerida no princípio da história aprofunda-se na separação da própria família e no seu esforço por sobreviver - outra função lunar.
Para isso, ela terá de trabalhar (simbolicamente, Saturno: submeter-se às condições impostas exteriormente) e mudar de nome. Aqui algo notável: a noção identitária (sintetizada pelo próprio nome) é posta em questão. "Ter seu nome sequestrado por outrém" é como perder sua própria individualidade. Chihiro vira Sen. Mas é advertida pelo seu amigo, Mestre Haku: jamais se esqueça dele.
Então o Sol, que até então estava em segundo plano, entra em cena, junto com Saturno. Este, por sua vez, vem na forma de trabalho pesado. Limpeza. Quase literal: ela vai ter de lavar a sujeira, a merda mesmo, na casa de banhos para espíritos onde Yubaba, outro arquétipo lunar decaído, manda e desmanda.
Assim, para salvar e des-envolver seu potencial solar, ela terá de passar pelos testes de Saturno.
Limpar merda espiritual, esse é o primeiro desafio de Chihiro...
Fantástico.

Continua